“Lá vai ele outra vez deixar-me para trás sozinho no monte”- pensa, enquanto o carro avança, desaparecendo no pó.
“Estou por minha conta! Vamos a isto!” – dirige-se para o galinheiro, para ver se está tudo em ordem.
Da última vez que lá esteve, foi um bocado bruto com a melhor poedeira da capoeira, e o João fulo com ele. Posto isto, achou por bem ir ver como estava o bicho a recuperar. Com um pouco de sorte talvez já esteja melhor para mais uma corridinha.
Desde que foi viver para a quinta que adora esta brincadeira com as galinhas da capoeira. Às vezes abusa e corre mal, mas nada que uma ou duas semanas de repouso não resolvam.
Dessa última vez João tinha ido dar com ele no bar da Columbófila, horas depois, ainda com penas no colarinho. Um dos sócios na esplanada reconheceu-o, e ligou-lhe a avisar para o ir buscar… Era óbvio que algo se tinha passado.
“Coitado do João! Deixou-me no carro fechado enquanto foi à farmácia comprar materiais para fazer o curativo à galinha e eu tive um ataque de pânico por ter ficado fechado. Fiquei tão aflito, que quando voltou, tinha o carro virado do avesso. Culpa dele… Não gosto de ser retido contra a minha vontade. Ninguém gosta. Ele devia saber isso.”
Perdido nas suas memórias, chega rápido ao galinheiro, e ao ver que a poedeira ainda está murcha, percebe que não é dia de farra.
“Assim não dá luta, não tem piada, deixa-a lá quieta e logo tens a desforra noutro dia.”
Dirige-se para a saída da quinta, lembra-se dos irmãos, já não os vê há algum tempo.
Nasceram nos Estorninhos. Foram separados ainda jovens. Cada um seguiu o seu caminho.
Têm vidas tão diferentes. O mano mais velho leva uma vida de burguês. Tem os minutos de lazer todos contados, sem folga para a espontaneidade. A irmã tem a mania que é socialite e não aprova as suas escolhas de vida. Chega a ficar chocada com alguns dos locais que frequenta.
Um dia cometeu o erro de levar a irmã a um dos seus locais preferidos para comer. (Duas senhoras distintas, deixam comidinha da boa, petiscos mesmo, num local discreto, perto da quinta, para os mais necessitados). “Ora, eu achei que a minha irmã ia gostar, já que é o tipo de comida a que está habituada, mas ficou tão impressionada que não voltou a alinhar sair comigo.” – pensa.
Vai saltitando, ligeiro, rua abaixo, as pessoas com quem se cruza sorriem-lhe. Ele retribui com um ar satisfeito e feliz.
“Olha, está ali a D. Carla, vou-lhe dizer olá. Ela é sempre amorosa comigo” – pensa. “Oferece-me algo de beber quando os dias estão quentes, e de vez em quando tem um petisco escondido numa gaveta que me oferece com visível satisfação. É uma querida.”
Carla já o tentou cativar por mais que uma vez, mas ele é livre. Não se pode sentir agrilhoado.
“Sou afável para ela, mas se ela se chega muito a mim, afasto-me”
“Olha, vou ali dar um salto à praia. Está calor, vou dar um mergulhinho.”
O dia está quente e a água está apetecível. Experimenta a água a medo, dá um salto para trás quando a água lhe toca na pele, e corre por ela a dentro. Está deliciosa!
Rebola-se na areia, mergulha na água, salta nas ondas. Que dia tão fixe. E depois uma sestazinha num dos bancos da associação. “Ai…. Estou maçado. Vai-me saber bem uma sesta.“ Acorda já com o sol abaixo da linha do horizonte. Deixou-se dormir.
Corre para casa. Tem fome e não vê João desde manhã. Ele hoje nem se deu ao trabalho de o perseguir.
Já se sente, debaixo da passada, a humidade da noite que cai. A luz do interior escapa-se pela janela e guia-o para casa. Pela porta entreaberta, sente o cheiro da janta. Espreita a medo para dentro da cozinha.
João recebe-o com afagos. Bala abana a cauda, satisfeito, e lambe-lhe as mãos. São almas gémeas!
