Foi boa a pescaria. Ao longo da Avenida do Mar, após o período de encerramento compulsivo por causa da pandemia, os restaurantes de peixe fresco enchem-se de fregueses.
O desconfinamento já tardava. Há semanas que nem valia a pena sair ao mar. Com os restaurantes fechados, o preço pago na lota nem para o gasóleo chegava.
Hoje não! Hoje rendeu. O mar foi generoso e o leilão também.
Zé, João e Manita, seguem pelo passeio, desnudados da cintura para cima, t-shirts ao ombro. Tropeçando na calçada à vez, falando alto e rindo, vão emborcando cerveja directamente dos gargalos das garrafas de litro.
Vários metros atrás segue António. Partilha a euforia dos companheiros, mas a sua perna manca trava-lhe o ritmo. Não os consegue acompanhar.
“Ó Marreco” – grita António – “Aguenta aí pá!”
Zé Marreco, João e Manita suspendem a marcha e esperam pelo amigo.
É tal a euforia, que é difícil não reparar na cena.
António alcança finalmente os companheiros, ofegante do esforço extra sob um sol escaldante de final de Maio, que já adivinha o Verão. Um raio desse sol quente reflecte-se nas lentes espelhadas dos óculos amarelos de João, ao virar a cabeça na direcção do amigo que se acerca. Este detalhe prende a minha atenção.
António resmunga entredentes que não o podem deixar ficar para trás. Traz consigo o pagamento da faina, e não gosta de andar com tantas notas no bolso.
“Dá cá isso” – diz João. Mão no bolso, mão com mão, e mão no bolso novamente. Retomam a marcha juntos. Sigo-os com o olhar até deixar de os ver ao longe. Nunca mais me lembrei destes quatro.
Uns dias depois, ao folhear o jornal, leio uma nota sobre um corpo encontrado na doca das Fontainhas.
Quando o tiraram da água, tinha ainda no bolso dos calções uns óculos amarelos com lentes espelhadas.
 
	 
	